sábado, 15 de setembro de 2012

A Voz da Loucura Desmistificada

Segunda-Feira chuvosa no Rio de Janeiro. Entro no taxi com uma mala (grande) e peço para seguir até Engenho de Dentro, o taxista me pergunta por uma referência, eu falo: - Hospício, eu vou pro hospício. Conhece? Ele me olha pelo retrovisor, faz que sim com a cabeça e se cala. Eu também sigo calada, vou explicar o que e pra que? Eu tô bem, em paz, e estou me internando por livre e espontanea vontade, (ainda sem entender o que estou indo fazer lá, meu livro já entrou para revisão, mas sinto que preciso ir) e minha intuição nunca me enganou; sigo em frente.


No convite do Ocupa Nise – um movimento político de união entre Arte, Ciência e Cultura - Vitor Pordeus vem dizendo que eu posso tudo, o que eu vou fazer com esse tudo eu ainda não sei, mas sei que não sou 'normótica", e nunca aceitei as regras como elas são, então uma coisa é certa, eu vou me divertir e viver uma experiência enriquecedora. Músicos, artistas, poetas, cantores, humanistas, diplomata, educadores, psicológos, estão todos neste momento fazendo o mesmo que eu, indo para o atual Instituto Municipal de Assistência a Saúde Nise da Silveira, lugar onde minha diva mór passou grande parte de sua vida.


Chegamos. Desço do carro e vejo os primeiros sinais da ocupação, não há dúvida Nise está aqui. Subo as escadas da enfermaria rumo ao hotel da loucura, receosa, porém serena, afinal, o que é a loucura senão um estado? Pronto. Vejo tudo tão alegre, paredes estão pintadas, desenhadas e coloridas. Me hospedam na enfermaria três, ao lado de um poeta do Templo da Poesia do nordeste e três atores do Instituto Pombas Urbanas, zona leste de Sao Paulo. A troca é incrível. Instantânea. Telepática.


Os dias vão passando, as relações se fortificam, as barreiras se rompem, a criatividade aumenta, o sono vai ficando cada vez mais leve, e os sonhos trazem revelações compreendidas no sarau poético matinal que alegra nossa mesa de café. Os rituais xamânicos passam a dominar nossas manhãs, os nós se desatam. As atividades se intensificam, a loucura se desmistifica, sim, estamos internados com os loucos, alias, aqui dentro nem dá pra saber quem é louco e quem é normal, quem é paciente e quem é cuidador. O poeta Ray canta: “Cuidar do outro é cuidar de mim, porque tem gente dentro da gente”. Sempre pontuados pelo sonoro "Obrigadooooooo" do Rogerinho. Hoje escutei de uma interna “Eu vim parar aqui por amor, foi o amor que me enlouqueceu”. Foi dessa forma que o amor me atropelou nesta jornada, o amor, pelo outro, por mim, o colo e a cura, é isso; a lou; cura! 


Não rotule as pessoas, se você se investigar você vai encontrar algum traço em você que te coloca neste lugar, de louco. Fujam dos rótulos e vasculhe suas manias. Ser diferente é normal. Agora, como é ser humano? O que é ser humano? A educadora Heloisa Helena, consultora da Unesco defendeu após o Cortejo Feirante de hoje a tarde, que o Ser Humano deveria ser Patimônio da Humanidade, é, viramos raridade. Aliás, Nise escutou isso de um de seus clientes: - “Doutora, a senhora é mãe da Humana - Idade. O fim de tarde foi intenso, no Museu de Imagens do Inconsciente, abrimos alguns arquivos e cartas da doutora e entrevistei Lula Mello, Lula Wanderlei, Gladys, Glória, Patricia, Ateliê, Vladimir Magalhães da Silveira. 


E os dias seguem sem data. Atemporalidade domina o tempo e espaço. A música de Pingo começa a virar hit “Nós tamu tudo internado e vamu oferecer, um espetáculo pirado que é pra todo mundo ver” superada apenas por Ney Matogrosso cantando Balada do Louco a capela no jardim após um aclamado discurso de José Pacheco da Escola da Ponte. Arte pra todo lado, arte funcionando em sua forma mais genuina; manifestação como ferramenta de cura. Aqui dentro pode tudo, menos agredir ou desrespeitar o outro. A regra é não ter regra, estamos no hospício. Estamos revivendo o passado através do presente com o ideal de reconstruir o futuro. 


Foram 08 dias 'internada' em Engenho de Dentro, e acho que sai cedo demais, não queria ter tido ‘alta’ agora, não consigo me despedir de ninguém, não quero me despedir. Minhas lágrimas descem insistentemente, não consigo me conter. Sou abraçada por dois clientes do Instituto, os mestres de cerimônia deste espetáculo Gadu, o Grande Arquiteto do Universo, cuja filosofia ultrapassa a Constelação de Órion e o grande Mago na arte de se Reiventar, Pelezinho, o Rei da Rua. Com eles tive a certeza de que estou no caminho certo e não estou sozinha, a estória está se re-contando, agora, neste instante, está acontecendo dentro do engenho. Um filme passa pela minha cabeça em fração de segundos, afinal, são dois anos de extrema dedicação a esta pesquisa. Uma força latente faz meu coração bater mais forte e levo comigo um eco: Preserve sua singularidade, insano é o sistema e os conceitos mudam.  "DYONISE_SE"



                                                 
Miriam Rezende Gonçalves para Congresso UPAC - RJ, julho de 2012.

Créditos: As imagens usadas pertencem ao coletivo Núcleo de Ciência, Cultura e Saúde da Secretaria de Saúde do Municipio do Rio de Janeiro.

4 comentários:

Alessandro Ferreira disse...

Excelente!

Eduardo Rocha disse...

Maravilha!!! Dias de emoções e lidamos com diversas delas.

Anônimo disse...

Oi Miriam,

Você é especial, inteligente, seus posts têm conteúdo; você se mostra, natural e entregue...
Artista, linda, feminina, sem mofo, sem pó, sem
ranço; com o frescor do que é muito mais que pós-moderno; como se o simples e o complexo te habitassem em proporções iguais.
Você é intrigante...e fascinante. Assim eu te sinto...te vejo, te percebo, te descubro.
Um beijo meu!

Paulo Pombas Urbanas disse...

Muito lega minha doidinha linda, adoramos passar internados juntos, sem amarras, mascaras, preconceitos e conceitos determinados. Dentro de uma roda de energia alegre, emocional e principalmente humana em todos os sentidos de nossas relações. Agradeço a todos e a todas que participaram deste congresso e que se permitiram a se abrir como um livro de histórias nos alimentando. E principalmente a você Miriam por ser tão lutadora e determinada para realizar o seus sonhos. beijos